A noite do nosso Coringão em um 21 de Junho
Opinião de Walter Falceta
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Era mudança de estação, e disso bem me lembro. E para mim também. Acabava de deixar um emprego pelo qual tinha paixão.
O motivo: um chefe de hábitos excêntricos e frequentemente cruéis, que viria a destruir toda a equipe de trabalho.
Pensava em como prosseguir a vida. O que fazer? Onde? Então, como o estresse fermentasse, surgiu aquele “estar-mal” das transições difíceis.
Mas quando a vida se arrasta, capenga, quase sempre vem o querido Coringão a nos oferecer a mão, a oferecer o sinal da luz e a carga da energia. Você sabe disso, não é?
Em 31 de Maio, havíamos metido 5 a 0 no Vasco, em jogo eletrizante no Pacaembu. Havíamos ingressado no Pacaembu já no segundo tempo, no Tobogã, para ver a vingança daqueles 5 a 2 que o cruzmaltino, por meio de Roberto Dinamite, nos impusera em 1980, no Maracanã.
Na final, pegamos o copeiro Grêmio. No primeiro jogo, aqui, o gol de Luís Carlos Goiano, aos 20 do segundo tempo, nos assustou.
Mas logo depois foi lá, Marcelinho Carioca, estipular a vantagem novamente. E com diferença mínima seguimos para a decisão em Porto Alegre.
A ideia era viajar de ônibus para o Sul, mas como? Havia uma entrevista com um editor no dia seguinte, um texto para fechar em um job extra.
A solução foi comprar lugar no pacote da torcida, com avião bate-e-volta desde Cumbica, mais ingresso.
Parei no shopping Norte para investir na compra de uma câmera fotográfica, depois segui de Fiat Tipo até o estacionamento do aeroporto, em Guarulhos.
Poucas vezes, vi público tão heterogêneo. Havia um senhor negro, Joaquim ou João, já nos seus setenta e poucos anos, que faria sua primeira viagem aérea. Ele foi de terno, surrado, mas de terno (!), como a situação lhe parecia exigir.
Lembro que tocou a campainha na passagem pelo detector de metais. Por pândega, um moleque disse-lhe para tirar a dentadura. E, sem cerimônia, o veterano a arrancou e a ofereceu ao funcionário do aeroporto. Muita risada, muita irreverência.
Do Salgado Filho para o antigo Olímpico, aquele que os gaúchos acreditavam ter sido um dia o maior estádio particular do mundo, o ônibus seguiu com receio, escolhendo o caminho.
No bairro Azenha, no entanto, não houve como escapar da fúria gremista.
“Deita todo mundo ou recolhe”, ordenou o “chefe” da delegação. E foram minutos intermináveis de sabugadas de milho, latadas e uma pedrada que juraram ter varado a janela do lado esquerdo e também a do lado direito do veículo.
O Olímpico era um estádio ruim para se ver o jogo, especialmente atrás dos gols, onde a arquibancada se escondia nas profundezas, encoberta pelas placas publicitárias.
Ali, nos reservaram lugar. Pouco antes da entrada em campo, resolveram fazer o poropopó. Eu participei, e na bagunça da pulação deixei cair a máquina fotográfica adquirida horas atrás. Nunca mais a vi. Foi-se sem uso, para sempre.
Encetou-se jogo amarrado, duro, difícil, como todo jogo decisivo no Sul. À esquerda, víamos as organizadas do Grêmio reforçadas de apoios externos. Eram bandeiras grandes do Palmeiras, do Coritiba e do Vasco da Gama.
Não sei se era ilusão, mas posso jurar que, em dois ou três momentos, cantamos muito mais alto do que todos os donos da casa, de tal modo que eles mesmos se permitiram uma curta pausa para checar o fenômeno alvinegro.
Foi em uma dessas proezas do grito visitante, aos 27 do segundo tempo, que Marcelinho Carioca tocou para as redes, bem ali a nossa frente.
Comemoração dura, pesada, pranteada, que me rasgou o casaco no ombro. Vi o negro de terno, num canto logo acima, erguendo as mãos para o céu dos pampas, conversando com seu Deus.
Nossos mosqueteiros se defenderam dos mosqueteiros deles até o fim do jogo, amparados pela Fiel, que comemorava cada bola espanada, que multiplicava por cinco mil a gana de Célio Silva, Zé Elias, de Ronaldo, de Henrique, de Silvinho e de Viola.
E, assim, com todos nós, juntos, “peleando” à paulista, corações mal engolidos, desesperados, fascinados, alcançamos aquele triunfo inédito.
Aí, sim, cantamos sozinhos, sem concorrência, enquanto o estádio ia se esvaziando de seus donos, danados e feridos.
Os brigadianos, alguns felizes pela filiação colorada, fizeram com que todos os gremistas abandonassem o estádio antes de nós, mas foi uma lida longa.
Os times enfim saíram de campo, os refletores foram se apagando, até que restasse um ou outro, fontes de luz vaga e mortiça.
Então, caiu uma neblina fortíssima sobre o estádio, daquelas espessas que podemos cortar a faca. De repente, exaustos ou satisfeitos, nos calamos também.
E era um silêncio enorme, tarde da noite, da noite de estranho perfume polar.
E ficamos ali, embasbacados, a admirar o contentamento quieto da solidão coletiva.
Obrigado, Corinthians! Nunca me esquecerei!
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.