É preciso amar (e perdoar) como se não houvesse amanhã
Opinião de Rafael Castilho
4.2 mil visualizações 38 comentários Comunicar erro
Durante muitos anos guardei comigo uma espécie de mágoa do Rincón. Para ser mais preciso, vinte e dois anos de raiva.
Alguém um dia falou que a raiva é o amor virado do avesso. Não me parecia possível perdoar o Rincón. Por ocasião de seu falecimento trágico e precoce, estava pensando: perdoar de quê, exatamente?
Me pus a pensar. Seria raiva por ele ter ido jogar no Santos? Acho que não. Sequer daria tamanha importância para este acontecimento. Resolvi que minha mágoa se restringia ao fato de ele ter deixado o Corinthians, sendo tão amado por nós.
Sim, foi uma mágoa de amor traído, de desterro. Uma dor pelo abandono. É como uma pessoa que a gente ama, se inspira, idolatra, saísse pela porta de casa, sem nenhum motivo aparente e fosse embora para nunca mais voltar.
Quando soube do acidente que ocorreu com o Rincón, fiquei absolutamente consternado. E não imaginava que isso pudesse doer tanto. Descobri, da maneira mais fatídica, que ainda gostava muito do Rincón. Estava tudo aqui dentro de mim, cimentado, rebocado, impermeabilizado pela mágoa que permiti que se instalasse dentro de mim.
É como se um amigo de longa data, que por alguma razão se afastou de nossa vida, tivesse morrido e, subitamente, percebêssemos que não tivemos a chance de passar por cima de certas coisas e dizer o quanto gostávamos dele, o quanto o admirávamos.
Ficou algo no ar. Algo em suspenso. A Fiel vai ter que lidar com esse sentimento. Uma história inacabada é como um fio desencapado que pode dar um curto circuito repentinamente. Sim, Rincón saiu do Corinthians deixando sua história inacabada. Nunca soubemos direito como lidar com essa situação. Como disse, menos por ter ido para o Santos, mas muito mais porque, caso tivesse ficado pelo menos mais um ou dois anos no Corinthians, poderia ser hoje o maior – ou um dos maiores – ídolos de nossa história.
Se havia um jogador que olhávamos atuar dentro do campo e sabíamos que estávamos vendo ao vivo uma futura estátua no Parque São Jorge, esse alguém era o Rincón.
A gente realmente ficou sem entender o porquê de ele ter ido embora. Na época, dizia-se que era por conta do desentendimento com um diretor. Outros disseram que era uma questão financeira. Não sei.
Me intrigava o fato de que em seu último gol com a camisa do Corinthians, no jogo contra o Al Nassr, fazendo o gol que nos classificou para a final, ele apontava para o próprio ouvido, como se protestasse contra os xingamentos da torcida. Eu estava no estádio esse dia. Ninguém xingava o time, muito menos o Rincón que àquela altura era disparado o jogador mais respeitado pela torcida. Vendo a série documental do Michael Jordan, entendi que alguns atletas constroem um inimigo quase que ficcional para encontrarem motivação extraordinária em algumas situações. Não sei se os inimigos do Rincón eram íntimos, fantasmas internos ou se realmente havia gente lhe fazendo mal.
Só não compreendia mesmo como ele pôde jogar tanta coisa fora. Foi péssimo para o Corinthians e péssimo para ele também, pelo menos olhando de fora. Bom, a verdade é que digo essas coisas também para exorcizar os meus demônios. Para extravasar, jogar para fora isso tudo que ocorreu.
Ao saber de sua morte foi como se nenhuma dessas perguntas fizesse mais sentido. Ficou dentro de mim apenas a lembrança do jogador excepcional que foi o Rincón.
O Rincón jogou muito. O Rincón jogou muito, muito muito muito mesmo. Perdoem a expressão, mas o Rincón jogou para car***! O Rincón jogou demais com a camisa do Corinthians. Tive privilégio de ver desde o primeiro até seu último jogo como nossa camisa, naquele 14 de janeiro de 2000 no Maracanã. Ah, lembrei-me que houve uma volta depois.
Não me lembro de ter visto um jogo ruim do Rincón. Principalmente quando o Luxemburgo acertou sua posição. Quando começou a jogar como volante, o Freddy superou todas as expectativas.
Era como uma torre, uma fortaleza. Possuía uma técnica exuberante, uma habilidade fenomenal, uma inteligência incomum. Dominava todos os fundamentos do futebol. Para além de todas as qualidades com a bola no pé, Rincón era uma referência. Era como se fosse um super-herói. Sua estatura, sua força, sua valentia, sua liderança. A gente olhava o Freddy dentro de campo e era algo muito simbólico. Era como se ele sintetizasse o que pensávamos ser o ideal que imaginávamos para um jogador do Corinthians. A gente via o Rincón jogando, já em com uma idade em que todos consideravam à época como o “fim de carreira” e ele parecia impecável. Corria o jogo todo. Corria com inteligência. Não precisava desperdiçar energia. Mas, nunca esqueço, quando era preciso demonstrava mais energia do que qualquer jogador e não foram poucas as vezes que cobriu os zagueiros, o goleiro e salvou a bola na risca do gol.
As pessoas comentavam das cotoveladas do Rincón. Mas ele não fazia nenhum movimento de golpe. Era incrível essa jogada, ele fazia em todos os jogos. Recebia a bola no meio campo. Carregava. Acelerava rumo ao ataque para servir os atacantes com seu passe magistral. Quando percebia um adversário se aproximando ele mantinha a bola nos pés. Corria com a bola e o adversário o perseguia. Quando Rincón decidia que a perseguição já era suficiente, simplesmente ele freava. Como ele não tinha luz de freio, o adversário que corria atrás dele se chocava, como se tivesse batendo a cara no poste. O adversário caia quase desacordado. Depois vinha outro. Acontecia a mesma coisa. Era uma jogada muito maliciosa.
Era como se o Rincón fosse feito de titânio. Incrível um jogador tão forte ter morrido dessa forma.
O ano de 1999, até a conquista do mundial no início de 2000, foi o seu melhor período. Era um prazer imenso vê-lo jogar. Fez algumas das atuações mais incríveis que já assisti, desde que acompanho o Corinthians (e o futebol como um todo). Certamente, Rincón tem lugar garantido no Corinthians de todos os tempos. Não há quem possa montar um time de onze jogadores e não escalá-lo retumbantemente como titular.
Como disse, estava no Maracanã na conquista do nosso primeiro mundial. A felicidade que o Rincón me deu na vida não tenho como descrever. Fecho os olhos e me lembro, como se fosse ontem, dele levantando a taça. Vejo essa cena com todos os brilhos. Jamais esquecerei. Estou certo que levarei comigo essa imagem, mesmo depois que partir desse plano terreno.
E por falar nisso, fica para mim essa lição. A vida é muito rápida e breve para que nos orientemos pelas mágoas. Principalmente a mágoa de quem a gente ama e admira. Eu também já errei tanto nessa vida, como posso negar o meu perdão?
Quando minha alma corinthiana sair desse planeta, deixando esse corpo igualmente corinthiano, espero encontrar o Rincón vestindo a camisa do Corinthians. Lhe darei um abraço forte e estou certo que ele me dirá com aquela voz grave: VAI, CORINTHIANS!!!
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.