Vitorioso Corinthians de Carille não goleia. E expõe choque de gerações da torcida
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Por Lucas Faraldo
Que o Corinthians do técnico Fábio Carille conseguiu, ao vencer as três últimas edições do Campeonato Paulista, igualar um feito que não se repetia havia 80 anos no Parque São Jorge, muitos torcedores já sabem. O que muita gente talvez não saiba - ou melhor, não percebeu - é que esse mesmo vitorioso Timão comandado pelo também mesmo vitorioso treinador é o que menos aplica goleadas na década, assumindo de forma mais enfática que o próprio Mano Menezes o DNA defensivo emplacado há dez anos pelo pioneiro gaúcho e tão contemplado pelo conterrâneo sulista Tite nos "anos dourados" do século 21 alvinegro.
E o que o tricampeonato paulista tem a ver com a seca de goleadas que o Corinthians vive? São contrastes ideais para ilustrar a filosofia de Carille: o pragmatismo que dá resultado. E que leva ao auge as discussões entre os próprios torcedores do Timão sobre quando se deve (ou quem deve) comemorar empates de 0 a 0, como aconteceu recentemente contra Internacional pelo Brasileiro e Fluminense pela Sul-Americana, em meio a atuações de luxo como a da vitória de 2 a 0 sobre o Botafogo, que levantam a bola para um possível potencial (principalmente ofensivo) ainda não muito bem explorado no atual elenco alvinegro.
Há um lado certo nesta discussão? Quem tem razão num debate em que um lado valoriza os tais empates sem gols em função dos títulos que a filosofia tem rendido ao clube e o outro lado cobra um futebol mais vistoso (e naturalmente perigoso) com expectativa de mais gols?
Para responder a essa e a outras perguntas, o Meu Timão entrevistou o professor doutor João Ricardo Cozac, psicólogo de esporte há 30 anos, doutor em psicologia do esporte pela Universidade de São Paulo. Ele acumula experiência profissional em clubes de futebol no próprio Corinthians, além de Palmeiras, Goiás, Cruzeiro e Ituano.
Choque de gerações
"O torcedor projeta no seu time de coração um conteúdo emocional muito forte. Diria que o torcedor projeta muitas vezes a sua identidade na ação do time para o qual ele torce. Portanto, numa ideia mais simples: se o meu time vai bem, eu me sinto bem, minha auto-estima fica elevada porque existe uma espécie de fusão emocional entre o torcedor e a equipe para a qual ele torce. Numa análise inicial, se o time vai mal, me sinto fracassado; se o time vai bem, me sinto bem-sucedido", inicia Cozac.
Mas afinal: o que é "ir bem ou mal" tratando-se da opinião de diferentes torcedores sobre um mesmo time? A resposta pode estar diretamente ligada à idade do torcedor em questão, no que o psicólogo define como "choque de gerações".
"Tem um choque nítido de gerações que caminha paralelamente à evolução cronológica do futebol. Quem viveu o futebol das décadas de 70, 80, até início de 90 tem expectativa diferente e consegue de alguma forma valorizar o futebol bem jogado, vistoso, se incomoda com a derrota, claro, mas existe um choque geracional em relação ao comportamento das torcidas sobre vitória em jogo feio e derrota em jogo bonito", explica Cozac.
O psicólogo associa as gerações mais recentes de torcedores, da década de 90 para cá mais precisamente, a um comportamento de maior intolerância. São pessoas com menos resistência à frustração e, portanto, maior desejo de vitória "a qualquer custo".
"É um desejo, uma necessidade maior da vitória dada a esse conceito tão maciço do fanatismo a ponto de abrir mão de um jogo bonito em troca da vitória. Gerações anteriores que acompanharam um futebol também que favorecia muito mais essa admiração e essa adesão a um futebol bem jogado muda com uma nova geração e também com o próprio futebol em si, que é hoje um futebol mais burocrático, feio, sonolento", diz.
Cozac, no bate-papo com a reportagem, usou as figuras de um avô e de um neto para exemplificar essa discussão entre torcedores. O adolescente torceria quase que exclusivamente para que o time fosse campeão. O avô poderia muito bem, em caso de derrota, falar ao neto algo como "olha, o time jogou muito bem, um futebol maravilhoso".
"E o neto provavelmente se frustraria porque existe nessa geração uma necessidade de um abastecimento mais instantâneo da sua própria identidade projetada no time", argumenta o psicólogo. "Gerações anteriores conseguiam analisar com um pouco mais de distanciamento, apesar do intenso amor pelo time, tinham visão um pouco mais romântica e profunda do significado do futebol bem jogado."
Fanatismo e 'resultadismo' lado a lado
Quantas vezes você torcedor já criticou ou viu críticas a respeito do imediatismo que rege o futebol brasileiro? Três derrotas seguidas e um técnico já passa a ser contestado. Três jogos sem fazer gols e o centroavante já gera desconfiança. Esse comportamento está fortemente ligado a outros dois sintomas: o fanatismo e o "resultadismo", que andam lado a lado.
"Existe uma questão cultural voltada ao resultado, no Brasil, sobretudo no futebol, prioriza-se muito o resultado em detrimento à questão do desempenho, da performance, individual e coletiva. Esse ponto é uma das características primordiais do fanatismo. O fanatismo é o auge do processo de projeção de identidade e de auto estima num objeto e dar a esse objeto o poder de dizer aquilo que sou", define Cozac.
"Há uma valorização emocional simbólica representativa muito maior para uma vitória do que para um time que joga muito bem, dá drible da vaca, joga bem, dá olé e perde jogando bem. O legado que fica de uma partida em que um time joga bem e perde é o que consideramos uma frustração para o torcedor. O torcedor quer em primeiro lugar que o time ganhe. Se possível, jogando bem", completa.
A significado de gritar gol
Num cenário mais imediatista, "resultadista" e fanático, ganhar de "meio a zero" basta, desde que os três pontos sejam conquistados e a busca pelo título siga a todo vapor. Passa por aí a teoria dos times de Fábio Carille. Prova disso são os títulos "desacreditados" que o Corinthians conquistou. E o baixíssimo poder de fogo que a equipe demonstra.
Somando as duas passagens e as três diferentes temporadas em que Carille treinou o Corinthians, ele soma até aqui sete goleadas (de três ou mais gols de diferença): quatro em 2017, três em 2018 e nenhuma em 2019. Para efeito de comparação, seguem os números totais de goleadas do Timão por temporada ao longo da última década:
- 2019: 0
- 2018: 4*
- 2017: 4
- 2016: 9
- 2015: 13
- 2014: 9
- 2013: 6
- 2012: 6
- 2011: 5
- 2010: 8
- 2009: 4
* Uma das goleadas foi sob comando de Osmar Loss
Para o torcedor que, mesmo inconscientemente, relacione sua auto estima ao Corinthians, os títulos são sem dúvida a forma mais eficiente de se sentir bem. Para aqueles que apreciam o momento, não há outro mais "catártico" que o gol - numa partida marcada por goleada, essa magia momentânea se reproduz três, quatro, cinco, inúmeras vezes.
"Eu diria que dentro de uma partida nenhuma emoção se compara à emoção do gol. O gol é a explosão maior de emoção no futebol, não tem outro momento igual. Há lances que geram sensações prazerosas nos torcedores, mas igual ao gol não tem nenhum outro momento. Eu chamaria de uma explosão da catarse, uma explosão catártica. Um momento em que a torcida realmente dá vazão a toda a energia interna armazenada e de alguma forma mantida pelo processo do fanatismo. É o momento em que essa tensão interna ganha espaço para sua manifestação" define Cozac, antes de concluir:
"O momento da catarse é o momento do gol. O momento da representação é o momento da conquista. Na hora do gol, é momentâneo, explosivo, traduz uma emoção naquele momento. O título condecora, deixa consistente a identidade do indivíduo. O título é muito mais duradouro do que a emoção momentânea do gol."