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@poetasilas em 10/02/2020 às 18:28
Crônica para office-boy dormir:
Corinthiano que se preza
O tataravô era Corinthiano, o avô era Corinthiano, o pai, contando palha, era também Corinthiano, claro. Aliás, antigamente, ou se era seguidor do time dos ancestrais, ou nem era filho mesmo, era deserdado e acabou-se o que era doce. Tinha disso. E tinha também várias maneiras de convencimentos, no amor, no grito, na marra, e com ideias de gracezas e contentices, tipo, o melhor time da capital da Itália, era o Roma, nome da cidade. Ou, o melhor time de Curitiba, é o Coritiba, nome da cidade (sem as iniciais, claro, que os fundadores eram crentes), mas, para engatar chiste, o maior time do Estado de São Paulo era o... Corinthians. Ia por aí a chalaça, nas barulhices de gozação e abdução.
Mas o pai do Júnior já era mais vivido, tinha passado por isso, no final pegara gosto, mas resolveu de tentar diferente com o filho. Era seu estilo todo próprio de ser pai, cidadão, torcedor e amigo.
Um dia, jogão no Morumbi, São Paulo e um time da Libertadores, que é o único campeonato em que os torcedores lotam o estádio. Lá foi com o filho, assistiu, viu o menino sondar ações e reações, aquela torcida meia choca, jogo duro, ao final o SPFC perdeu e foi eliminado da competição, os torcedores saíram miudinhos, um mal xingou um craque de canela de vidro, ou de maizena, pó-de-arroz, coisa assim, uns quantos queimaram a bandeira do tricolor com fogueiras de insatisfação e dezelo.
Certo dia, tempos depois, o pai levou o imberbe piá ao jogo do Santos no caldeirão da Vila. O Santos que montou vários times de craques mirins, apostava numa nova leva. A safra era boa. E ainda tinha o status histórico de ter sido o maior time do mundo, Pelé, Coutinho, Pepe, etc. E tal. O Santos jogou num placar apertado, e ganhou o jogo com um único gol. A Torcida pequena, mas pra Vila cabia, e saíram todos meio fervorosos, a maioria de torcedores adultos ou velhos, contidos, poucos jovens, estavam ali avós, pais e filhos.
Depois o pai levou o guri para o Parque Antártica. A peleja foi dura, a torcida marrenta reclamando acintosamente, a turma do amendoim perdida ora torcia para acertar, ora torcia contra qualquer coisa, xingava, os descendentes de italianos irados, afinal o time empatou e todos agredidos todos com palavrões cabeludos, divididos, foi um pega-pra-capar sair do estádio, com a polícia acionada para fustigar a Macha Verde ou colocá-la para escanteio, porque queria bater em jogadores fracos ou depredar o patrimônio do Clube. Em toda torcida tem disso, claro.
Lá pelas tantas, o pai levou o moleque ao Pacaembu, Corinthians e Ponte Preta, adversário histórico e rabugento. O clima fervia. O pai que só seguia avaliando o filho em cada contexto especial, naquela ocasião não se assuntou muito, pois era o Corinthians e o coração saia pela boca, o estádio parecia não ser desse mundo, com o tanto alumbramento indizível, inexplicável. Era como se um culto numinoso, sagracial. O Timão não deu sorte, jogou bem mas perdeu, foi desclassificado nos pênaltis. Quando o velho chateado deu pela coisa, de saber o filho amado, ação, reação, sintomas, viu que ele estava no meio do grosso da torcida que parecia mamada em pólvora celeste, o herdeiro com uma bandeira na mão, gritava seu amor, num misto de choro, fervor e arrebatamento. Daí o pai se lembrou da avaliação, do encargo, da missão, dos cuidados e da proteção para aquele abduzido torcedor emergente.
Dirigiu-se até aquele monte de torcedores da Gaviões da Fiel em agito geral, e a muito custo deslocou o filho, abraçando-o, como quem se colocasse como uma asa no ombro do menino torcedor, e já carente sofredor. Quando mirou os olhos do filho, foi que sacou; estavam cheios de sangue. A camisa suada. O menino tinha sido batizado. Era o amor de sua vida, que fora amor da vida de seus ancestrais, e agora era encaminhamento para amor da vida do filho, como um especial sentido de viver, amar e respirar pelo Corinthians. Só quem é Corinthiano que sabe, não tem explicação cientifica nem filosófica. Um estado de espírito? Uma benção? Uma dádiva? A torcida é que tem o time. Ah, tem o Hino, o manto sagrado, o Brasão, a Nação de milhões de fiéis, os cracaços, mas é, afinal, uma coisa que não se explica assim com palavras, verbos, orações, nem com batismo, catecismo, obrigação, desafio. O menino tinha sido ungido, estava encantado.
Estava na alma, no coração. Honra e glória.
Chegando em casa, o pai emocionado, a família reunida; tinham visto o jogo pela tevê, estavam chateados, mas olharam para o pai que estava como se arrebatado de algum modo, emoção na face. O patriarca então apontou para o Júnior e disse, quase chorando de alegria:
-Esse é meu filho amado, a quem me comprazo (1) e a quem me consagro.
O herdeiro, agora alumbrado Corinthiano, estava escrito nas estrelas de um coração fiel.
-0-
Silas Corrêa Leite
(1)
Significado de Comprazo: substantivo deverbal. Ação de comprazer, de ser cortês, de servir, auxiliar ou fazer a vontade. Ação de ser condescendente. Ação de se deleitar ou de se satisfazer: eu me comprazo dando aulas. Etimologia (origem da palavra comprazo). Forma Der. De comprazer. Definição de Comprazo: Flexão do verbo comprazer na: 1ª pessoa do singular do Presente do Indicativo. Eu me comprazo trabalhando, estudando, buscando uma vida melhor, escolhendo melhor, torcendo pelo melhor.
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